quinta-feira, 20 de junho de 2013

Batom coral e saudades do novo Brasil

   
Fotografia de Ana Cecília Romeu


   Levanta-se, caminha lentamente até o espelho, passa batom coral e sai às  ruas.

   Observou suas linhas de expressão, a pele aveludada de tessitura adulta se fazia depoimento vivo: sorrir e chorar geravam vincos e vínculos.
   Lembrou-se do medo de falar e das muitas vezes que lhe taparam a boca. Que havia chorado ao depositar seu primeiro voto; de quando era adolescente e debutou como um pequeno ponto em sua primeira multidão, fora em noite chuvosa e fria no centro de Porto Alegre, não coloriu os lábios e vestiu-se de negro.
   Na fronte, imagens difusas de espinhos e pétalas. Ainda acreditava nas flores e no visto de ida ao país que não conhecia, mas sentia saudades.
   Levantou-se, caminhou lentamente até o espelho, passou batom coral e saiu às ruas de um Brasil que não era mais o mesmo.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Isso que chamam de amor

Alma II - giz de cera sobre papel Canson, por Ana Cecília Romeu


Se te quero é porque és
meu amor minha cúmplice e tudo
e na rua lado a lado
somos muito mais que dois.
(fragmento de Te quiero – de Mário Benedetti)


   Não somos uma metade que procura outra metade para se completar, somos um inteiro que procura outro inteiro para transcender.
   O amor nos acrescenta para além de mera unidade, nos transformamos pelo olhar do outro, é quando se dá o complemento. Uma matemática toda esquisita e subjetiva para além da lógica: quando um somado a um é mais que dois, como nas sábias palavras do poeta uruguaio Benedetti.
   Nessa equação sentimental, alguns dizem que o problema é que se acredita no ‘romance rosa’; no que contraponho, penso que a questão é quando não se crê nele. Temos direito a sermos princesas ou príncipes. Não matem a cinderela, por favor! Como chegar à majestade de nosso reino amoroso, sem antes experimentarmos ser filhos dele, e se deixar levar, simplesmente? É quase como decorar o ato de contrição sem mesmo ter pecado. Entendendo que isso é uma fase, pois que ela seja ‘eterna enquanto dure’, como disse o poeta.
   A vivência do paraíso nos trará mais adiante a certeza da continuidade, ou das trevas. Quem inventou essa coisa de amor planejou para que o Gênesis fosse a paixão, que nem sempre significará prenúncio de Apocalipse.
   Quando amamos, olhamos para trás e não conseguimos imaginar o que já fizemos sem ser com aquela pessoa. Até os momentos de discussão foram os mais belos, nossa melhor atuação, mas porque foi compartilhado com aquele ator, não com outro.
   O amor não é morno, ele oscila, passa por todas as estações, todos os nossos tempos. É como um morrer e permanecer vivo, como dizia Quintana. E um saber-se acabar no outro para se reiniciar: “não morro de amor, morro de ti, amor”, sentenciou o mexicano Jaime Sabines.
   E é um sentimento exigente. O amor altruísta é o fraternal; o amor a dois é troca, o famoso ‘dar e receber’ para além da permuta de fluídos, e não perdura se não temos a contrapartida, é quando nos dispomos a ser cadastrados numa espécie de fila do sopão, mas queremos que o outro também tenha se credenciado.
   Só amamos quem conhecemos o suficiente para perceber que o som nos agrada quando ouvimos, e ansiamos por repetição, sonhando ser possível o lado B nesse CD, pois o ser amado é como aquele seriado que colocamos em horário nobre e aguardamos cada capítulo: ainda que alguns episódios nos decepcionem, esperamos nova temporada.
   O amor deixa nossa alma tão hipercalórica que já não cabe mais no corpo, é quando somos mais que um. E mesmo que o tempo desbote, aqui e ali, o frescor das primeiras cores, desejamos a aquarela inteira: o ontem que queremos hoje, porque nos trará nova manhã. Isso para mim é o que chamam de amor.


Crônica publicada também nos jornais: 
O DIA (Rio de Janeiro);
NH (Novo Hamburgo); 
Diário Popular - seção Análise (Pelotas) 
e site do jornal Correio Rural.


Carinhoso - com Marisa Monte & Paulinho da Viola